A EPIDEMIA ZUMBI
Por Elizabeth de Fátima Souza terapeuta holística
Sempre detestei histórias com zumbis.
Assisto filmes de vampiros, terror sobrenatural, ficção... mas zumbis me incomodam muito. Até o presente momento não havia percebido a razão, mas hoje ao ler um artigo acendeu aquela luzinha.
A crença nos zumbis se origina do vodu afro-caribenho, em que o morto ressuscita controlado por um feiticeiro. A vida lhe é devolvida para que sirva ao seu mestre ou invocador, sem, contudo, o livre arbítrio que nos é comum.
Outra interpretação é apresentada pelos filmes e histórias de ficção, onde vemos um apocalipse zumbi com mortos vivos sedentos de sangue criados por uma praga ou vírus. O mais trágico é que qualquer pessoa atacada por eles também se torna um zumbi e a “humanidade” corre o risco de desaparecer. Como defesa é preciso cortar-lhes as cabeças.
Ocorre que o apocalipse zumbi começou há tempos, eu apenas não havia relacionado ficção com realidade.
Os zumbis não pensam, movem-se mecanicamente, na maioria das vezes em grupos. Parecem estar vivos, mas não estão, pois não possuem consciência plena, não interagem entre si e apenas reproduzem os mesmos movimentos.
Transportando esse conceito para a nossa realidade, podemos dizer que nós também estamos cercados por zumbis. Pessoas que abriram mão de seu livre arbítrio e passaram a agir sob a influência de feiticeiros ou mestres (sejam eles religiosos, políticos ou extremistas manipuladores).
Segundo Jung, ao nascer cada um traz consigo uma essência, da qual precisará se tornar consciente, desenvolver e atuar no mundo de maneira integrada e harmônica. Assim acontece naturalmente o processo da individuação, que significa tornar-se um ser único, consciente da própria singularidade e que busca a realização do Si mesmo, a harmonia entre o ego e o self, onde nem um nem outro existe independentemente.
É um trabalho perene de autoconhecimento que, por não ser fácil, requer coragem, energia, humildade e discernimento. Requer olhar para os próprios aspectos sombrios e aprender a lidar com eles. Caso contrário, serão projetados em outras pessoas.
O Self em harmonia nos mostra como ser indivíduo e ao mesmo tempo contribuir para o bem-estar da sociedade. Mas, para que possamos atuar com autonomia, devemos lutar para escapar da consciência coletiva, nos diferenciando do todo e nos livrando das crenças que nos influenciam de modo inconsciente.
Assisti a um filme bem interessante chamado “A maldição dos mortos vivos”, de 1988, dirigido por Wes Craven. O roteiro não trata de mortos voltando para atacar os vivos por impulso ou como consequência de uma praga. Ali, os zumbis são as “vítimas” e suas ações obedecem aos interesses sociais e políticos de feiticeiros.
O Vodu, como outras crenças e seitas, é visto como uma religião que possibilita a troca de favores com resultados imediatos.
No filme, o feiticeiro ou mestre diz: “A dor física que eu posso causar não é nada em comparação ao que eu posso fazer com a mente”. Está instalada, portanto, uma relação de poder e medo. Assim começa o controle.
E como bem disse Carl G. Jung “O amor não é o oposto do ódio, o poder é o oposto do amor”.
A questão principal abordada no filme não é a morte, mas sim o sofrimento causado por se estar preso a um servilismo fruto da perda da consciência, da responsabilidade por suas escolhas. Esse é o apocalipse que o filme retrata, lembrando que a etimologia da palavra traz o significado de revelação.
Somos seres duais – luz e sombra; qualidades e defeitos – e se abrirmos mão da consciência de que crescemos nos desafios e somos responsáveis por nossas escolhas, caímos, fatalmente, no vitimismo e passamos a negar o Divino que existe em nós. Deixamos de ser guiados pela nossa consciência e transferimos esse poder para um terceiro. Afinal, é mais fácil acreditar que os meus erros, as minhas faltas, não estão em mim e são fruto de um “mal” que eu não tenho o poder de exorcizar – mas aquele a quem escolho seguir tem.
Olhar para a própria sombra é desafiador, mais fácil é não ver. É preciso encontrar um culpado fora.
Surge então alguém com palavras fortes e macias que emana poder e exerce um fascínio tal que as sombras se conectam, gerando uma enorme projeção.
Eis o mestre, o invocador que pode ser uma pessoa, um grupo ou um sistema.
Seus seguidores zumbis não o avaliam, pois perderam o senso crítico e a autonomia do pensamento. “E se a consciência se apresentou corruptível é porque o sistema de crenças era corrupto”.
A palavra corrupção se origina do latim corruptos que significa quebrado, em pedaços, estragado, corrompido.
A pergunta que fica é: o que se quebrou ou se corrompeu?
Se somos seres interligados energeticamente e emocionalmente, assumir uma postura individualista, narcísica, egoísta e centralizadora é ir na direção diametralmente oposta ao que seria humanamente natural. O racismo, individualismo, separatismo, preconceito, negacionismo, egoísmo, fazem parte da consciência corrupta que justifica as ações agressivas, parciais e autoritárias nas crenças que reforçam esses padrões e causam fascínio, controle e temor.
Lutar contra a epidemia zumbi significa desenvolver o senso crítico, avaliar, desconfiar, afastar e rejeitar posturas e falas como as acima descritas, não ser conivente ou se calar frente à corrupção no sentido mais amplo. E tomar consciência exige empenho, coragem e pode ser doloroso.
É preciso ampliar o olhar e ver o quanto somos manipulados por uma sociedade que não estimula a autonomia do pensamento, que separa e classifica as pessoas, que estimula o consumo desenfreado, que aumenta a desigualdade levando algumas pessoas a uma invisibilidade social, que ficou evidente com a pandemia da Covid-19.
“O andar constante do zumbi e sua eterna busca pela devoração dos cérebros [em busca de consciência] não deixa de ser uma metáfora perfeita para esse modo de vida pautado pelo consumo nas sociedades capitalistas: ansiedade e compulsão, criadas para mover os lucros advindos do consumo, para em seguida serem tratadas com medicamentos que as controlam, promovendo assim mais consumo. No momento em que esse ciclo perde qualquer referência de seus limites, o consumo transforma-se no autoconsumo. (CONTRERA e TORRES, 2018, p. 13).
Mas simbolicamente ao cortar a cabeça dos zumbis, corta-se a consciência corrupta ou corruptível, tirando-os do poder e do controle de seus mestres, onde quer que estejam pois essa é uma epidemia psíquica altamente contagiosa.
Os que estão vivos podem e devem se preservar com coragem, força, determinação e discernimento para rejeitar as agressões psicológicas e as manipulações vergonhosas contrárias à nossa essência.
Resgatar a consciência da individualidade e integração social em harmonia constitui o verdadeiro conceito de humanidade (a dor do outro é a minha dor, não quero ter vantagem sobre ninguém, o que desejo de bom para mim também quero para todos).
A pandemia causada pela COVID-19 acentuou essa epidemia zumbi e nos clama a enxergar com clareza o que acontece ao nosso redor, para que possamos sobreviver como sociedade.
A pandemia mudou o mundo! Nada será como antes.
Se essa mudança será melhor ou pior, cabe a nós decidir.
É preciso estar atento, contudo à epidemia paralela, se não tomarmos decisões importantes, de cunho individual e coletivo, perderemos a luta.
Referências:
Vaz, Sonia Regina Lunardon - “Os zumbis – consciência corrupta e corruptível”.
Vedovati, Alethéia Skowronski e Torres, Leonardo - Necropolítica, zumbis, covid-19 e Jung.